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Presidente da Comissão de Advocacia Criminal foi entrevistada em reportagem sobre DH

02 de março de 2015

A reportagem “Ser uma pessoa é o que basta”, publicada pelo jornal Gazeta do Povo na edição de domingo (1º), tem entre os entrevistados a presidente da Comissão de Advocacia Criminal da OAB Paraná, a advogada Priscilla Placha Sá. Na reportagem é destacado um projeto desenvolvido na Penitenciária Feminina do Paraná que aposta em diálogo e ações humanitárias no combate à reincidência no crime. E reforça que direitos humanos não podem ser entendidos como privilégio de alguns. Leia abaixo o texto na íntegra ou clique aqui:

Ser uma pessoa é o que basta
Direitos Humanos não podem ser entendidos como privilégio de alguns. Programa desenvolvido na Penitenciária Feminina do Paraná aposta em diálogo e ações humanitárias no combate à reincidência no crime
Michele Bravos

Ela tem nome e sobrenome. Sueli Oliveira. Tem também um trabalho: bordadeira da empresa Lafort, e uma família: os gêmeos de 10 anos e uma adolescente de 16 anos. Apesar da calça cinza e da camiseta branca que a identifica como detenta da Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), Sueli tem uma identidade e é também detentora de direitos.

Não são poucas as vezes em que manifestações de ódio – públicas ou virtuais- surgem contra pessoas que cometeram crimes e, hoje, cumprem pena por seus atos. Segundo a advogada Priscilla Placha Sa, presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB/PR, na sociedade da meritocracia, o termo “direito” passou a ser atrelado a algo que precisa ser conquistado. É como se só aqueles que produzem ou representam o que é esperado pela maioria fossem merecedores. “A verdade é que basta ser uma pessoa para ter os seus direitos garantidos”, diz Priscilla.

De acordo com levantamentos da organização internacional Human Rights Watch, um dos pontos mais críticos em termos de violação de direitos humanos no Brasil está voltado para o ambiente carcerário, inclusive com registros de maus-tratos na Subcomissão das Nações Unidas para a Prevenção de Tortura e Outros Tratamentos Cruéis.

Diante desse cenário, a Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), uma das unidades de segurança máxima do país, está servindo de modelo para outras instituições, com a implementação do Programa Ciência e Transcendência: educação, profissionalização e inserção social, que traz um olhar humanitário para o ambiente prisional focado no combate à reincidência no crime.

Sueli, hoje com 36 anos, teve no seu caminho um amor obsessivo que a levou para o tráfico, crime pelo qual 80% das apenadas que estão na PFP respondem. Ela participa do Programa e é enfática em dizer que ele transformou o seu pensamento e o de muitas mulheres lá dentro. “Eu ouvia algumas dizerem que voltariam para o crime ao sair daqui. Que essa seria a única possibilidade. Hoje, o que eu escuto é que elas têm um plano para suas vidas. A gente percebeu que por mais difíceis que as coisas sejam lá fora, a gente é capaz de fazer diferente”.

Além das novas perspectivas, a diretora da Penitenciária, Rita Naumann, afirma que, desde o início da proposta, em 2012, outros avanços são visíveis no tratamento penal. “Posso afirmar que estamos percebendo resultados positivos, principalmente pelo fator humanização. Desde a presença do Programa não tivemos nenhuma rebelião e eu atribuo isso ao trabalho que tem sido realizado, com certeza”.

Só no Paraná, 33 unidades entraram em conflito, em 2014. Em nota pública, diante do número crescente de rebeliões, a Pastoral Carcerária afirmou que da forma como as penitenciárias têm funcionado , elas “sequer são lugar de gente”, mas, sim, de morte e sofrimento. A ausência de rebelião na PFP é um indicador valioso para os envolvidos no Programa e também para o Estado.

Diferenciais
O Programa, idealizado por Fernando Arns e coordenado por Cristiane Arns, é uma parceria entre a Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e a Secretaria da Justiça, Cidadania e dos Direitos Humanos (SEJU) e consiste em atividades semanais firmadas sobre três vertentes: pesquisa, que contribui para o entendimento desse contexto e dos problemas sociais; regularidade, por meio da qual é possível desenvolver um trabalho efetivo que está sempre em evolução; e relacionamento, que permite com que vínculos sejam gerados e o valor do ser humano resgatado.

O Programa ganhou forma quando Arns se questionou sobre a situação carcerária brasileira comparada a outros países. “Eu percebi que na Europa, por exemplo, há um movimento que se preocupa em fazer com que o preso saia da prisão melhor do que quando entrou e isso é efetivo. Considerei que podíamos fazer algo por aqui”.

A coordenadora Cristiane ressalta que o grande diferencial do Programa é a sua periodicidade. “O meio prisional tem outro ritmo e, para entendê-lo, é preciso imergir nele. Partimos da premissa que é preciso vivenciar essa realidade em detalhes para que surjam transformações”.

Outro ponto de destaque é a interação do meio externo – representado por universitários e professores da PUCPR voluntários -, com o meio carcerário. A advogada Priscilla lembra que ainda que detentas e detentos estejam fisicamente afastados da sociedade, eles pertencem a ela e que a grande tranca a ser aberta nesse contexto é a questão cultural. “É preciso descontruir o pensamento que diz que quem está preso é diferente de quem está fora de uma cela. Será que não somos tão violadores quando nos impomos tirando ou negando os direitos de alguém?”.

Posse dos direitos
Estão lá, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, 30 artigos que conferem a todos – independente de suas ações, crenças, etnia, gênero -, os direitos à educação, à igualdade, ao lazer, à condições dignas de vida. Diante da Lei, a pessoa que cometeu um delito deve ser privada de liberdade, do direito de ir e vir, e não de todos os outros 29.

Em um país cuja taxa de encarceramento subiu 30% nos últimos cinco anos, segundo dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), é preciso voltar a atenção para esse público, buscando soluções que impeçam que sejam reincidentes. “O cárcere é a reprodução hiperbólica dos nossos flagelos sociais. Não se resolve nada, simplesmente colocando alguém num lixão de pessoas”, diz Priscilla.

Por isso, os envolvidos na iniciativa aplicada na PFP acreditam que, para que a pessoa encarcerada tenha uma mudança de consciência que não a leve a ser reincidente no crime, é preciso investir em práticas que resgatem a sua identidade e a sua autoestima. “Em todos os projetos que desenvolvemos, a primeira abordagem começa pelo ‘quem sou eu?’, ‘que olhar eu tenho para mim mesma?’. A base de uma mudança é a estima”, afirma Cristiane.

Com a autoestima elevada, elas conseguem se reconhecer e, portanto, passar a se perceber como cidadãs com direitos, mas também com deveres para com o entorno. Para que se possa entender o impacto que os próprios atos gera nos outros é necessário autoconhecimento. “O enfoque humanitário das atividades que estão sendo realizadas está criando um terreno fértil para transformações significativas”, considera a diretora Rita.

Sueli afirma que hoje se vê de uma forma especial e que sonha em estar com sua família novamente, ter uma casa e um emprego – mesmo que lhe dê menos dinheiro que o crime. “Eu não tenho medo de enfrentar os desafios que virão. Eu sei que haverá preconceito lá fora contra uma ex-presidiária, mas eu sei do meu valor. Eu me vejo com um valor tão grande que nem eu sabia que eu tinha”.

Dentre os projetos focados no resgate da autoestima dessas mulheres estão as atividades de Coral e Teatro. A professora de Música Cris Lemos, da PUCPR, voluntária no Programa, descreve que, de modo geral, a arte tem o poder de fazer com que a pessoa olhe para si. “Com a arte, você se autoconhece em um processo natural e orgânico. Acredito que a arte é prioritária para um trabalho social como esse, pois ela toca na alma do ser, extrapolando a razão e conseguindo gerar transformações profundas”.

Um projeto de fotografia, parceria externa com o movimento internacional Help-Portrait, também influenciou positivamente nesse processo da reconstrução da autoimagem. De acordo com a diretora Rita, as fotos contribuíram para que as mulheres se sentissem valorizadas. “O projeto foi realizado com 40 mulheres e devido a boa repercussão entre as apenadas, pretendemos expandí-lo para todo o complexo da PFP, cerca de 400 mulheres. Para isso, estamos em busca de recursos que possam viabilizar o trabalho”.

A professora, que nunca havia trabalhado antes com pessoas privadas de liberdade, afirma que as mudanças no comportamento das apenadas são visíveis. “Hoje, além de dar abraços, nós também recebemos. Isso simboliza a cumplicidade e a entrega. Para se entregar é preciso se sentir segura de si, antes de mais nada. Elas conseguem olhar com amor para elas mesmas e para os outros e isso se reflete nas relações interpessoais”.

Profissionalização e liberdade
Diante do discurso da ressocialização, a advogada Priscilla entende que todos são, portanto, responsáveis pelo egresso prisional. “O que, de fato, eu estou disposto a fazer para que a sociedade seja diferente? Eu contrataria uma ex-presidiária ou um ex-presidiário?”

Com o intuito de prepará-las para a vida além dos muros, cursos profissionalizantes são oferecidos pelo Programa. Neste último semestre, aconteceram os cursos de Pintor, em uma parceria com a Tintas Coral, e de Manipulador de Alimentos, coordenado pela nutricionista voluntária Flávia Auler.

A grande aposta para que as mulheres se sintam realmente prontas para voltar a sociedade é o Projeto de Vida, aplicado com detentas que estão a um ano do fim de suas penas. “Nesse projeto, proporcionamos momentos de reflexão sobre a vida além do cárcere. Trabalhamos com elas como se portar em uma entrevista de emprego e como fazer planejamento financeiro, por exemplo. Apresentamos a elas possibilidades reais, para que elas se sintam fortes na hora da saída”, afirma Cristiane.

Arns comenta sobre a intenção de expandirem o Projeto de Vida para o ambiente externo, com a criação de um local que possa auxiliar as egressas por até um ano da saída delas. “Para se ter uma vida nova, é preciso se ter um ambiente de convívio novo. Estamos buscando parcerias e apoios externos para que possamos viabilizar isso juntos”.
Sueli, que faz parte desse grupo que está tão perto de alcançar a liberdade, acredita que quando sair a sua vida será diferente. “Eu estou aqui há 6 anos e eu aprendi muito nesses dois últimos. Eu fui vista com amor e respeito e todo mundo precisa disso para conseguir mudar”.

Fonte: Gazeta do Povo