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O tempo e a desigualdade de gênero

08 de julho de 2019

Por Cleber Moletta, jornalista*

Bertrand Russell acreditava, já em 1935, em O elogio ao ócio (Sextante, 2002), que todas as pessoas deveriam trabalhar 4 horas diárias e dedicar o restante do tempo ao estudo e diversão. Isso tornaria as sociedades mais justas, igualitárias e produtivas. Na época ele apostava que as novas máquinas possibilitariam jornadas reduzidas com o mesmo nível de produção. O filósofo e matemático de Cambridge não era cínico: sabia que alguns já podiam usufruir do privilégio do ócio se valendo da exploração do trabalho de muitos. Mas por seu senso de Justiça reivindicava o direito para todos.

Aqui as provocações de Russell podem nos ajudar a pensar um aspecto da desigualdade de gênero. Quem fez (ou faz) o trabalho indesejado para que alguns usufruam seu tempo? Em escala familiar temos a resposta com clareza: são as mulheres.

Ou seja, na maioria absoluta das famílias os homens economizam seu tempo ao não assumirem certas tarefas e gozam do ócio em atividades prazerosas e produtivas.

Quem cuidou dos doentes em sua família nos últimos anos? É bem provável que se alguém precisou ‘se sacrificar’ deixando o estudo ou o trabalho para se dedicar aos cuidados de um acamado, esse alguém seja uma mulher. Por que o cuidado não é tarefa de homem?

Mais do que uma constatação que leigos (como eu) podem fazer esse tema é abordado cientificamente pela assistente social e pesquisadora Etiene Rabel Corso. Mestranda em Desenvolvimento Comunitário pela Unicentro (Universidade Estadual do Centro-Oeste) ela relatou que no aspecto gênero e geração de cuidadores de pacientes com Alzheimer na região de Guarapuava a maioria é mulher, mais de 40 anos, e frequentemente com baixa formação escolar. Nas palavras da pesquisadora “são essas mulheres que assumem a responsabilidade pela saúde da família”. E, claro, na maioria dos casos deixam de lado o seu ócio.

Mas não é somente em momentos extremos da vida familiar que a mulher assume a tarefa rejeitada pelos homens.

Recentemente participei de uma atividade sobre masculinidade tóxica na escola Leni Marlene Jacob, no bairro Primavera, em Guarapuava. Um dos pontos abordados no bate-papo foi a realização de tarefas domésticas. Logo se ouviu de um menino: ‘ahh… eu e até meu pai ajudamos minha mãe a limpar a casa’. Ora, uma frase que denuncia o entendimento coletivo de que existe uma responsável pelo indesejado trabalho doméstico: é a mulher.

Desenvolvendo a conversa deu pra perceber que os adolescentes tinham compreensão clara de que não é justo uma divisão desproporcional de tarefas de limpeza doméstica, por exemplo. O mesmo vale para o cuidado com os filhos. No entanto, creio que lhes falta o que é raro atualmente entre os ‘machos’: tomar uma atitude. É como se fosse ‘natural’ a aptidão das mulheres para determinadas tarefas.

No fundo, nós homens, queremos garantir nosso privilégio de usar o tempo com o prazeroso e produtivo. Não queremos perdê-lo limpando o vaso sanitário, varrendo a sujeira do chão, estendendo a roupa que a máquina lava, fazendo comida, cuidando dos doentes, dando banho e trocando fralda dos filhos. Não tomamos atitude porque nós homens queremos nosso tempo para coisas nobres como estudar idiomas, nos prepararmos para o concurso público, praticarmos esporte e realizarmos atividades artísticas e lúdicas. Isso certamente explica em parte a ausência de mulheres em determinados postos de destaque.

E com certo cinismo evitamos o debate, se valendo de um estranho entendimento coletivo, aparentemente majoritário, que considera a tarefa doméstica coisa de mulher. Não queremos sair da nossa zona de conforto.

É certo que não se trata somente de uma questão de gênero: homens guardando seu tempo e se valendo da força de trabalho doméstico das mulheres. Sejam homens ou mulheres, tendo maior poder aquisitivo compram o tempo de pobres para realizarem essas tarefas. Mas mudar a macro-desigualdade social brasileira não está diretamente ao nosso alcance.

Se de fato prezamos pela Justiça, temos que tomar uma atitude em nossas famílias, ao menos.

Talvez essa não seja a causa mais grave e urgente, mas é a mais próxima de nós para combatermos a desigualdade de gênero.

*Este conteúdo faz parte de uma ação da OAB Guarapuava, que em julho está dando visibilidade para conteúdos que abordem temas relacionados ao combate à violência contra mulheres e luta pela equidade de gêneros.